quinta-feira, 5 de novembro de 2009

SENTENÇA FAVORÁVEL EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Ação Civil Pública proposta por esta Promotoria de Justiça a fim de demolir pavimentos construídos acima do permitido na legislação vigente na orla da praia da Enseada foi julgada procedente.
Autos nº 061.09.001552-6
Abaixo a íntegra da decisão:

1. O Ministério Público do Estado de Santa Catarina, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, ajuizou a presente Ação Civil Pública em face de José Mário Pires, bem como contra o Município de São Francisco do Sul, todos devidamente qualificados nos autos, expondo e alegando, em síntese, que:

A) procedimento administrativo preliminar instaurado no âmbito do Ministério Público constatou a ocorrência de danos ambientais decorrentes de irregularidades em diversas edificações nos bairros de Ubatuba e Enseada, erguidas em desacordo com as posturas municipais, que exigem determinado recuo mínimo e número máximo de pavimentos;

B) o primeiro requerido construiu um prédio na Avenida Atlântica com piso térreo mais quatro pavimentos (quando a legislação municipal permite apenas térreo + dois) e com sem observância do mínimo nos fundos;

C) o município-requerido não cumpriu o dever de polícia de ordenar adequadamente a utilização do solo.

Com apoio nestes fatos e com fundamento na legislação municipal e federal, requereu a concessão de tutela antecipada, a citação dos requeridos, a produção de provas e, ao final, a procedência do pedido, com a demolição da obra e recuperação da área degradada, bem como indenizando os danos causados aos interesses difusos.

O pedido de liminar foi concedido em grau recursal (f. 196-209).

Regularmente citados, os requeridos ofereceram contestação.

O município-requerido arguiu preliminar de ausência de possibilidade jurídica do pedido de imposição do dever de fiscalizar, porque não previsto na lei de ação civil pública e por ausência de verba orçamentária para a aplicação das medidas solicitadas. No mérito, defendeu que o Poder Executivo não pode ser compelido a exercer o poder de polícia administrativa porque isto implicaria na invasão das atribuições inerentes ao poder discricionário. Também sustentou que sempre agiu de acordo com os dispositivos legais, nunca autorizou ou permitiu obras irregulares e, inclusive, autuou e embargou a obra do corréu, ajuizando contra eles ação demolitória (f. 238-251).

O requerido José Mário arguiu preliminar de inépcia da inicial por ausência de valor da causa e, no mérito, asseverou que requereu ao município a concessão de alvará, recolheu a importância devida, mas não obteve resposta. Argumentou que a demolição dos pavimentos em excesso poderia implicar em dano estrutural, pelo que deve ser ressarcido (f. 364-367).

Houve réplica (f. 375-379).

Este, na concisão necessária, o relatório.

Fundamento e decido:

2. Inicialmente, é importante ficar registrado que a lide comporta julgamento antecipado, mostrando-se desnecessária a produção da prova testemunhal ou pericial.

Nesse sentido, em ação com mesma causa de pedir, o TJSC fixou:

"ADMINISTRATIVO – AÇÃO DEMOLITÓRIA – PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA ANTE O JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE – REJEIÇÃO – MATÉRIA FÁTICA INDEPENDENTE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA – NATUREZA PESSOAL – PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA – OBRA CONSTRUÍDA SEM ALVARÁ DE LICENÇA – IMPOSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO – RECURSO NÃO PROVIDO.
1. 'Versando os autos sobre matéria essencialmente de direito, torna-se irrelevante a produção de provas outras que não aquelas já produzidas com a inicial e com a peça contestatória' (Apelação Cível n. 2006.025440-5, de Tijucas. Rel. Des. Rui Fortes)" (AC nº 2005.022169-2, da Capital, Desembargador Jaime Ramos, j. 21/02/2008).

A preliminar de inépcia da inicial suscitada pelo requerido José Mário deve ser rejeitada, uma vez que o autor, antes da citação, emendou a inicial e valorou adequadamente a causa (f. 166).

Também não há a aventada impossibilidade jurídica do pedido (defendida pelo município-requerido). A Constituição da República confere ao Ministério Público a função institucional de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III). Esta regra é suficiente para garantir a exigibilidade do dever de fiscalizar o cumprimento das regras ambientais e de posturas municipais. Ademais, no amplo espectro das obrigações de fazer se conforma, sem dúvida, o dever de fiscalizar.

Por outro lado, eventual imposição do dever de fiscalizar não implica em controle jurisdicional de atos discricionários (o poder público não pode optar entre fiscalizar e não fiscalizar), daí que não se pode falar em indevida ingerência do órgão jurisdicional em atividade exclusiva da administração pública.

A doutrina e a jurisprudência reconhecem a necessidade de se direcionar a ação contra o causador direto do dano e, também, contra aquele que contribuiu indiretamente ou se descurou do dever de evitar o dano.

A propósito:

"Agravo de Instrumento. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO AMBIENTE. Obra em área de preservação permanente. Particular. MUNICÍPIO. Litisconsórcio Passivo. Cabimento. Recurso provido.(...) parte PASSIVA na ação ambiental será o responsável pelo dano ou pela ameaça de dano, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, inclusive a Administração Pública. Entendemos que o Poder Pública poderá sempre figurar no pólo passivo de qualquer demanda dirigida à reparação do meio ambiente: se ele não for responsável por ter ocasionado diretamente o dano, por intermédio de um de seus agentes, o será por omissão no DEVER que é só seu de FISCALIZAR e impedir que tais danos aconteçam. (Édis Milaré)" (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2004.003958-1, de Palhoça . Relator: Pedro Manoel Abreu . Órgão Julgador: Terceira Câmara de Direito Público . Data: 23/08/2005).
No mérito, o pedido de demolição deve ser julgado procedente (vale registrar que o Município de São Francisco do Sul ajuizou uma ação demolitória contra o réu, autuada sob n. 061.06.004242-8, julgada procedente e atualmente em grau recursal).

Não há dúvida de que a construção foi feita sem a indispensável autorização administrativa e, além disso, em desacordo aos padrões previstos na legislação municipal (sem possibilidade física ou material de correção).
A Lei Municipal n. 763/81 estabelece no artigo 25 que as Zonas Residenciais (classificadas em ZR-3, ZR-4 E ZR-5) se destinam a atender a demanda de população flutuante que aflui a essas áreas nos períodos sazonais, procurando-se proteger a paisagem natural, pois esta representa o principal fator de atração turística do Município.

A Lei nº 763/81, em seu anexo Quadro II-b, é clara ao estabelecer que na área identificada por ZM-3 (Zona Mista 3), onde se situa o imóvel do réu, o número máximo de pavimentos é "térreo + 2".

No caso concreto, é incontroverso que, além do piso térreo, o prédio tem quatro andares. Na contestação o réu não nega esta assertiva. Nem poderia fazê-lo, uma vez que a fotografia de f. 300 mostra claramente que ele está edificando um prédio com "térreo + 4 pavimentos", absolutamente fora do padrão.

Além disso, não se obedeceu o recuo exigido pelas posturas municipais.

Com efeito, descreve o auto de embargo de f. 46:

"Descrição dos fatos: obra sendo realizada sem alvará de licença p/ construção, sendo prédio com 4 pavimentos.
Dispositivo legal infringido – Lei 603/76, art. 6º e 229, Item I
[...]
Observações: Não obedece o recuo mínimo exigido nos fundos do imóvel, bem como não respeita o número máximo de pavimentos".

Evidencia-se - até porque não demonstrado o contrário pelo réu - que se trata de construção de edifício sem o alvará e fora do padrão legal.

A Lei nº 603/76, que dispõe sobre as construções e edificações neste Município, estabelece:

"Art. 6º. Qualquer edificação, construção ou assentamento de máquinas e equipamentos, situados no território do Município de São Francisco do Sul, estarão sujeitos às normas e condições da presente lei e só poderão ser iniciados se o interessado possuir alvará de construção, fornecido pela Prefeitura Municipal" (o destaque é meu).
O art. 7º:
"Considera-se ilegal a construção quando:
I – não estiver licenciada pela Prefeitura;
[...]
§ 2º. Na impossibilidade de conseguir a regularização das construções no prazo e condições estabelecidas, elas estão sujeitas a embargo e demolição".



Em se tratando de obra ilegal, que não respeita os preceitos de edificação do Município de São Francisco do Sul, sem possibilidade de regularização, a demolição é medida imperativa.

Neste sentido:

"APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DEMOLITÓRIA – OBRA FORA DO PADRÃO LEGAL – DESRESPEITO AOS LIMITES LATERAIS IMPOSTOS PELA LEGISLAÇÃO MUNICIPAL – AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DO PODER PÚBLICO – CLANDESTINIDADE – IMPOSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO – READEQUAÇÃO DO FUNDAMENTO LEGAL DA SENTENÇA RECORRIDA – APELAÇÃO DESPROVIDA
'Construindo o particular sem licença do município, o que torna clandestina a obra, por força do que dispõe o Código de Posturas, comete ele ato ilegal, rendendo ensejo ao uso, pela Administração, do poder de polícia que lhe é inerente, não só para embargar, imediata e sumariamente, o prosseguimento da obra, como também para lograr a demolição da mesma' (AC n.º 1997.002612-9, Des. Trindade dos Santos)" (AC nº 2006.009738-6, Des. José Volpato de Souza).
Ou ainda:
"ADMINISTRATIVO – CONSTRUÇÃO CLANDESTINA – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS – ABUSO DE PODER – INOCORRÊNCIA – PROCESSO ADMINISTRATIVO – DESNECESSIDADE – RECURSO DESPROVIDO.
Em situações tais, a demolição se constituiu numa medida drástica, porém necessária, pois tem a finalidade de preservar o interesse público inerente à fiel observância das normas urbanísticas. A esse respeito, Hely Lopes Meirelles ensina que 'o ato ilegal do particular que constrói sem licença rende ensejo a que a Administração use o poder de polícia que lhe é reconhecido, para embargar, imediata e sumariamente, o prosseguimento da obra e efetivar a demolição do que estiver irregular" (Direito de Construir. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1.994, p. 166)' (Apelação Cível n. 2005.025787-9, da capital, Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, julgado em 14.11.2006)" (AC nº 2006.044938-9, Des. José Volpato de Souza).
E mais:
"ADMINISTRATIVO – CONSTRUÇÃO CLANDESTINA – AÇÃO DE DEMOLIÇÃO – PROCEDÊNCIA DO PEDIDO
A construção clandestina, por não ter alvará de licença ou de autorização pode ser embargada e demolida, porque em tal caso o particular está incidindo em manifesto ilícito administrativo, já comprovado pela falta de licenciamento do projeto, ou por sua inteira ausência (Hely Lopes Meirelles)" (AC nº 2008.002687-1, Des. Luiz Cézar Medeiros).

Desnecessário discorrer sobre a ineficácia absoluta da aventada autorização tácita ou verbal da administração pública ou então sobre a suposta promessa de alteração da lei de posturas municipais.

Não tem o réu que reclamar de "erro" causado pela Administração porque iniciou a obra sem alvará e o protocolo do projeto somente ingressou depois do embargo, estando incorreta a afirmação do contrário.

Apesar de demonstrada a legitimidade passiva do município de São Francisco do Sul, por ser responsável pelo dever de fiscalização (poder de polícia administrativa), no mérito não se verifica o descumprimento deste papel.

A ação foi ajuizada em 04/09/06 (f. 01). Mais de um ano antes, em 05/04/05, o município já havia emitido auto de infração (f. 45) e auto de embargo (f. 46). Como dito antes, o município também ajuizou uma ação demolitória.

Passando à análise dos pedidos formulados na petição inicial, não se vislumbra a possibilidade de imposição ao pagamento de indenização por danos a interesses difusos ou à recomposição da situação ambiental anterior.

Primeiro porque o prédio foi construído na orla marítima de uma das praias mais densamente povoadas do município, não sendo razoável (diante da ausência de prova) supor que justamente naquela estreita faixa (rodeada de construções) existia um imóvel de valor ambiental.

Segundo porque a legislação ambiental, em princípio, não impede construções no imóvel litigioso (ao menos o autor da ação não comprovou o contrário no momento oportuno), do que se conclui que, uma vez demolida a obra, será possível edificar no local desde que atendidas as posturas municipais.
Terceiro porque, "ainda que admitida a imposição de indenização por dano moral coletivo em sede de ação civil pública, a providência deixa de ser adotada no caso concreto quando, por outros meios, garantiu-se o regresso ao estado anterior" (TJSC, Apelação cível n. 2007.043496-5, de Pomerode, Relator: juiz Jânio Machado. Órgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Público. Data Decisão: 09/12/2008).
O pedido de demolição dos pavimentos construídos além do permitido pelas posturas municipais merece acolhida. O objeto da ação demolitória n. 061.06.004242-8 (em grau recursal) é mais amplo e esta decisão não exclui nem limita a determinação contida naqueles autos.
Outrossim, embora constatado na instrução processual a inobservância do recuo mínimo na parte de trás do imóvel, não houve pedido expresso na petição inicial nesta parte, razão pela qual não é possível impor ao réu a correção do vício nesta ação, sob pena de julgamento ultra petita.

3. Ante o exposto, julgo improcedentes os pedidos em relação ao Município de São Francisco do Sul e, por outro lado, julgo procedentes em parte os pedidos formulados contra José Mário Pires e, em consequência, condeno-o a demolir os andares edificados fora do padrão legal e a reduzir a obra ao recuo permitido pelas posturas municipais, no prazo de 20 dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00, sem prejuízo de que, vencido este prazo, seja realizada por terceiro a suas expensas.

Defiro o pedido de f. 381, exclusivamente para substituição do tapume existente no imóvel até o trânsito em julgado da sentença, devendo o novo tapume ser feito de forma similar ao anterior, sob pena de multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), sem prejuízo da incidência do crime de desobediência.

Custas pelo réu.
Sem honorários, dado que "não é possível a condenação ao pagamento de honorários advocatícios em ação ajuizada pelo Ministério Público, a teor do disposto no art. 128, § 5º, II, a, da CRFB, o que também exclui a possibilidade de reversão de tal verba em favor do Fundo de Reparação de Bens Lesados" (TJSC - Apelação Cível n. 2007.004412-0, Rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, julgada em 26-3-2008)".

P. R. I.

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